sábado, junho 23, 2007

Desenfarte

Contam que o tal vivia imprimido numa letargia só. Quando perguntavam se bem estava, fingia que não escutava, não sabia definir o estado em si, de si mesmo. Letárgico andava pelas ruas de pedras, daquelas que balanceiam os carros, quase desapertando todos os parafusos existentes na engenhoca, de pés descalços, ladeiras abaixo e acima, queimado de Sol, o mesmo responsável pelas rugas, que, como, um punhado de rios secados, de Marte, ou emaranhado de raízes percorriam os cantos de sua face.

Sujeitinho em desassossego, se esvaziava aos poucos, parecia vomitar palavra por palavra toda enfermidade do mundo, de todas as Eras do homem sapiens, pouco a pouco. A dimensão disso tudo é contrastante. Feito o homem da padaria, que morrera, de infarto, carregado durante anos de tensão, com os filhos problemáticos, mas altas taxas de gordura e nicotina, entupiu-lhe as veias e um belo dia, digo, mal dia, bateu com a caçuleta. A viúva tratou logo de se agregar com entregador de pizzas, dez anos mais jovem e fugida zarpou na vida. Ah, o homem de qual falava, esse é o contrário de um tudo.

Enquanto uns morrem enfastigados, este traste, prestes vai a morrer de vazio. Já não tem mais ar que o comprima, estado de graças, flutua feito astronauta perdido, parece um zanzazão maluco, gravidade nenhuma prende-o em terra. Mas quem enganas - a mim não. A mim teus olhos não são opacos.

De tanto vazio, tem alguma razão de haver. Seja pela decepção com o viver, pela ignorância das pessoas perante-o, sejam por infelicidades quaisquer. De modo faz todos pensarem, nesse tal de infarto, é culpa do mal hábito ou do mal vivido?

E doi forte no braço, dor sobe pro coração, diz quem sobrevive, nunca sabe ao certo, se sai do coração e cai nas pernas - fulminante. É dessa moléstia, uns passam pelo tal coma. Já vi em filme, sujeito entre a vida e a morte, num corredor de luz, algo puxando pra beira de lá mortos - enquanto doutores repuxam o vitimado à base de eletro-choques no peito. O "des-morto" vai que num vai, feito elástico, mas o céu pode menos que a UTI? Não sabe-se, não mesmo.

É fato, de novo, o esvaziado de vida, andava por cima duma ladeirona de pedras, quando sentiu a "não dor", coisa esquisita. Sentia o que ninguém sente, uma "desdor" danada. Caiu rolando pedras abaixo. Morto.

Levado para examinar, abriram nele do peito abaixo um corte, foi que por surpresa de toda medicina, nada havia. O homem estava seco por dentro, nem sangue, nem órgãos, nem veias, nem nada; nada mesmo, nem sonhos.

Era um escuro só.

Pablo Montevideu

Um comentário:

Anônimo disse...

Adoro a maneira que escreve, é muito agradavel. Parabéns!!!!